terça-feira, agosto 31, 2010

Os Sapatinhos Vermelhos - Caio Fernando Abreu

I

Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. Ou quando começa: certos sustos na boca do estômago. Como carrinho de montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora.

Restava acender outro cigarro, e foi o que fez. No momento de dar a primeira tragada, apoiou a face na mão e, sem querer, esticou a pele sob o olho direito. Melhor assim, muito melhor. Sem aquele ar desabado de cansaço indisfarçável de mulher sozinha com quase quarenta anos, mastigou sem pausa e sem piedade. Com os dedos da mão esquerda, esticou também a pele debaixo de outro olho. Não, nem tanto, que assim parece japonesa. Uma japa, uma gueixa,isso é que fui. A putinha submissa a coreografar jantares à luz de velas. - Glenn Miller ou Charles Aznavour?-, vertendo trêfegos os sais - camomila ou alfazema? - na sua água da banheira, preparando uísques - uma ou duas pedras hoje, meu bem?

Nenhuma pedra, decidiu. E virou a garrafa outra vez no copo. Aprendera com ele, nem gostava antes. Tempo perdido, pura perda de tempo. E não me venha dizer mas que teve bons momentos, não teve não? A cabeça dele abandonada em seus joelhos, você deslizando devagar entre os cabelos daquele homem. Pudesse ver seu próprio rosto: nesses momentos você ganhava luz e sorria sem sorrir, olhos fechados, toda plena. Isso não valeu Adelina?

Bebeu outro gole um pouco sofrêga. Precisava apressar-se, antes que a quinta virasse Sexta-Feira Santa e os pecados começassem a pulular na memória feito macacos engaiolados: não beba, não cante, não fale nome feio, não use vermelho, o diabo está solto, leva sua alma para o inferno. Ela já estava lá, no meio das chamas, pobre alminha, nem dez da noite, só filmes sacros na tevê, mantos sagrados, aquelas coisas, Sexta-Feira da Paixão e nem sexo, nem ao menos sexo, isso de meter, morder, gemer, gozar, dormir. Aquela coisas frouxa, aquela coisa gorda, aquela coisa sob os lençóis,aquela coisa no escuro,roçar molhado de pêlos,baba e gemidos depois de - quantos mesmo? - cinco, cinco anos. Cinco anos são alguma coisa quando se tem quase quarenta, e nem apartamento próprio, nem marido, nem filhos, herança: nada. Ponto seco, ponto morto.

Ué, você não escolheu? Ele ficou parado à frente dela, muito digno e tão comportadamente
um-senhor-de-família-da-Vila-Mariana dentro do terno suavemente cinza, gravata pouco mais clara, no tom exato das meias, sapato ligeiramente mais escuro. Absolutamente controlado. Nem um fio de cabelo fora do lugar enquanto repetia pausado, didático, convincente - mas Adelina, você sabe tão bem quanto eu, talvez até melhor, a que ponto de desgaste nosso relacionamento chegou. Devia falar desse jeito mesmo com os alunos, impossível que você não perceba como é doloroso para mim mesmo encarar esse rompimento. Afinal, a afeição que nutro por você é um fato.

Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito
nutro&relacionamento&rompimento&afeto, teria dito também estima&consideração&mais alto apreço e toda essa merda educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado. Uma estalactite - estalactite ou estalagmite? merda, umas caíam de cima, outras subiam de baixo, mas que importa: aquela lança fininha de gelo afiado - cravada com extrema cordialidade no fundo do peito dela. Vampira, envelheceria séculos lentamente até desfazer-se em pó aos pés impassíveis dele. Mas ao contrário, tão desamparada e descalça, quase nua, sem maquilagem nem anjo da guarda, dentro de uma camisola velha de pelúcia, às vésperas da Sexta-Feira Santa, sozinha no apartamento e no planeta Terra.

Esmagou o cigarro, baixou a cabeça como quem vai chorar. Mas não choraria mais uma gota sequer, decidiu brava, e contemplou os próprios pés nus. Uns pés pequenos, quase de criança, unhas sem pintura, afundados no tapetinho amarelo em frente à penteadeira. Foi então que lembrou dos sapatinhos. Na segunda-feira tentando reunir os fragmentos, não saberia dizer se teria mesmo precisado acender outro cigarro ou beber mais um gole de uísque para ajudar a idéia vaga a tomar forma. Talvez sim, pouco antes de começar a escancarar portas e gavetas de todos os armários e cômodas, à procura dos sapatos. Que tinham sido presente dele, meio embriagado e mais ardente depois de um daqueles fins de semana idiotas no Guarujá ou Campos do Jordão, tanto tempo atrás. Viu-se no espelho de má qualidade, meio deformada, uma mulher descabelada jogando caixas e roupas para os lados até encontrar, na terceira gaveta do armário, o embrulho em papel de seda azul-clarinho.

Desembrulhou cuidadosamente. Uma súbita calma. Quase bailarina em gestos precisos, medidos, elegantes. O silêncio completo do apartamento vazio quebrado apenas pelo leve farfalhar do papel de seda desdobrado sem pressa alguma. E eram lindos, mais lindos do que podia lembrar. Mais lindos do que tinha tentado expressar quando protestou, comedida e comovida - mas são tão... tão ousados, meu bem, não tem nada a ver comigo. Que evitava cores, saltos, pinturas, decotes, dourados ou qualquer outro detalhe capaz sequer de sugerir sua secreta identidade de
mulher-solteira- e– independente-que-tem-um-amante-casado.

Vermelhos - mais que vermelhos: rubros, escarlates, sanguíneos - com saltos finos altíssimos, uma pulseira estreita na altura do tornozelo. Resplandeciam nas suas mãos. Quase cedeu ao impulso de calçá-los imediatamente, mas sabia instintiva que teria primeiro que cumprir o ritual. De alguma forma, tinha decorado aquele texto há tanto tempo que apenas o supunha esquecido. Como uma estréia adiada, anos. Bastavam as primeiras palavras, os primeiros movimentos, para que todas as marcas e inflexões se recompusessem em requintes de detalhes na memória. O que faria a seguir seria perfeito, como se encenado e aplaudido milhares de vezes.

Perfeitamente: Adelina colocou um disco - nem Charles Aznavour, nem Glenn Miller, mais uma úmida Billie Holiday, I’m glad, you’re bad, tomando o cuidado de acionar o botão para que a agulha voltasse e tornasse a voltar sempre, don’t explain , depois deixou a banheira encher aos poucos de suave água morna, salpicou os sais antes de mergulhar, com Billie gemendo rouca ao fundo, lover man, e lavou todos os orifícios, e também os cabelos, todos os cabelos, enfrentou o chuveiro frio, secou o corpo e cabelos enquanto esmaltava as unhas dos pés, das mãos, no mesmo tom de vermelho dos sapatos, mais tarde desenhou melhor a boca, já dentro do vestido preto justo, drapeado de crepe, preso ao ombro por um pequeno broche de brilhantes, escorregando pelo colo para revelar o início dos seios, acentuou com lápis o sinal na face direita, igualzinho ao de Liz Taylor, todos diziam, sublinhou os olhos de negro, escureceu os cílios, espalhou perfume no rego dos seios, nos pulsos, na jugular, atrás das orelhas, para exalar quando você arfar, minha filha, então as meias de seda negra transparente, costura atrás, tigresa noir, Lauren Bacall, e só depois de guardar na carteira, talão de cheques, documentos, chave do carro, cigarros e o isqueiro de prata que tirou da caixinha de veludo grená, presente de trinta e sete, só mesmo quando estava pronta dos pés à cabeça e desligara o toca-discos, porque eles exigiam silêncio - foi que sentou outra vez na penteadeira para calçar os sapatinhos vermelhos.

Apagou a luz do quarto, olhou-se no espelho de corpo inteiro do corredor. Gostou do que viu. Bebeu o último gole de uísque e, antes de sair, jogou na gota dourada do fundo do copo o filtro branco manchado de batom.

II

Eram três, estavam juntos, mas o negro foi o primeiro a pedir licença para sentar. A única mulher sozinha na boate. Tinha traços finos o negro, afilados como os de um branco, embora os lábios mais polpudos, meio molhados. Músculos que estavam dentro da camisa justa, dos jeans apertados. Leve cheiro de bicho limpo, bicho lavado, mas indisfarçavelmente bicho atrás do sabonete.

- E aí, passeando? - ele perguntou, ajeitando-se na cadeira à frente dela.

Curvou-se para que ele acendesse seu cigarro. A mão grande, quadrada, preta e forte não se moveu sobre a mesa. Ela mesma acendeu, com o isqueiro de prata. Depois jogou a cabeça para trás - a marcação era perfeita - tragou fundo e, entre a fumaça, soltou as palavras sobre os patéticos pratinhos de plástico com amendoim e pipocas:

- Você sabe, feriado. A cidade fica deserta, essas coisas. Precisa aproveitar, não?

Por baixo da mesa, o negro avançou o joelho entre as coxas dela. Cedeu um pouco, pelo menos até sentir o calor aumentando. Mas preferiu cruzar as pernas estudada. Que não assim, tão fácil, só porque sozinha. E quase quarentona, carne de segunda, coroa. Sorriu para o outro, encostado no balcão, o moço dourado com jeito de tenista. Não que fosse louro, mas tinha aquele dourado do pêssego quando mal começa a amadurecer espalhado na pele, nos cabelos, provavelmente nos olhos que ela não conseguia ver sem óculos, à distância. O negro acompanhou o seu olhar , virando a cabeça sobre o próprio ombro. De perfil - ela notou - o queixo era brusco, feito a machado. Mesmo recém – feita, a barba rascaria quando se passasse a mão. Antes que dissesse qualquer coisa, ela avançou com voz muito rouca:

- Por que não convida seus amigos para sentar com a gente? - Ele rodou um amendoim entre os dedos. Ela tomou o amendoim dos dedos dele. O crepe escorregou do ombro para revelar o vinco entre os dois seios - Acho que você não precisa disso.

O negro franziu a testa. Depois riu. Passou o indicador nas costas da mão dela, pressionando:

- Pode crer que não.

Soprou a fumaça na cara dele:

- Será?
- Garanto a você.

Descruzou as pernas. O joelho dele tornou a apertar o interior de suas coxas. Quero te jogar no solo a música dizia.

- Então chame seus amigos.
- Você não prefere que a gente fique só nós dois?

Tão escuro ali dentro que mal se podia ver o outro, ao lado do tenista dourado. Um pouco mais baixo, talvez. Mas os ombros largos. Qualquer coisa no porte, embora virado de costas para ela, de frente para o balcão, curvado sobre o copo de bebida, qualquer coisa na bunda firme desenhada, pelo pano da calça --- qualquer coisa ali prometia. Remexeu as pedras de gelo do uísque na ponta das unhas vermelhas.

- Uns rapazes simpáticos. Assim sozinhos. Não são seus amigos?
- Do peito - ele confirmou. E apertou mais o joelho. A calcinha dela ficou úmida - Tudo gente boa.
- Gente boa é sempre bem-vinda
Falava como a dublagem de um filme. Uma mulher movia o corpo e a boca: ela falava. Um filme preto e branco, bem contrastado, um filme que não tinha visto, embora conhecesse bem a história. Porque alguém contara, em hora de cafezinho, porque vira os cartazes ou lera qualquer coisa numa daquelas revistas femininas que tinha aos montes em casa. As mais recentes, na parte de baixo da mesinha de vidro da sala. As outras acumuladas no banheiro de empregada, emboloradas por um eterno vazamento no chuveiro, que a diarista depois levava. Para vender, dizia. E ela odiava contida a idéia das páginas coloridas das revistas dela embrulhando peixe na feira ou expostas naquelas bancas vagabundas do centro da cidade.

Se você quer mesmo - o negro disse. E esperou que ela dissesse alguma coisa, antes de erguer a mão chamando os outros dois.

- Não quero outra coisa - sussurrou.

E muito de repente - porque depois do quarto ou quinto uísque tudo acontece sempre assim, sem que se possa determinar o ponto exato de transição, quando uma situação passa a ser outra situação - quase de repente, o tenista dourado estava ao lado direito dela, e o rapaz mais baixo à sua esquerda. Na cadeira em frente, o negro olhava tudo e com atentos olhos suspeitosos. Perguntou o que bebiam, eles disseram juntos e previsíveis: cerveja. Ela falou nossa, bebam algum drinque mais estimulante, vocês vão precisar, rapazes, um ar de Mae West. Todos os três explicaram que estavam duros, a crise, você sabe, mas de jeitos diferentes. O tenista dourado chegou a puxar o forro do bolso para fora e mostrou, pegando a mão dela, veja, veja só, pegue aqui, mas ela retirou a mão pouco antes de tocar. Tão próximo o calor latejante na beira dos dedos. Problema nenhum, ofereceu pródiga: eu pago. A fita da garrafa pela metade, serviu do uísque dela ao negro e ao tenista-dourado. Não ao mais baixo, que preferia vodca, natasha mesmo serve. Ela então atentou nele pela primeira vez. Todo pequeno e forte, cabelos muito crespos, contrastando com a pele branca, lábios vermelhos, barba de dois, três dias, quase emendada nos cabelos do peito fugidos da gola da camisa, mãos cruzadas um tanto tensas, unhas roídas, sobre o xadrez da toalha. Cabeça baixa, concentrado em sua pequenez repleta da vitalidade que certeira, ela adivinhava mesmo antes de provar.

Pacientes, divertidos, excitados: cumpriram os rituais necessários até chegar ao ponto. Que o negro era Áries, jogador de futebol, mês que vem passo ao primeiro escalão, ganhando uma grana. Sérgio ou Sílvio, qualquer coisa assim. O tenista-dourado, Ricardo, Roberto ou seria Rogério? Um bancário sagitariano, fazia musculação e os peitos que pediu que tocasse eram salientes e pétreos como os de um halterofilista, sonhava ser modelo, fiz até umas fotos, quiser um dia te mostro, peladinho, e ela pensou: vai acabar michê de viado rico. Do mais baixo só conseguiu arrancar o signo, Leão, isso mesmo porque adivinhou, não revelou nome nem disse o que fazia, estava por aí, vendo qual era, e não tinha saco de fazer de social.

Eu? Gil-da, ela mentiu retocando o batom. Mas mentia só em parte, contou para o espelhinho, porque de certa forma sempre fui inteiramente Gilda, Escorpião, e nisso dizia a verdade, atriz, e novamente mentia, só de certa forma, porque toda a minha vida.

Então dançaram, um de cada vez. O negro apoiou a mão pesada na cintura dela e, puxando – a para si, encaixou o ventre dos dois, quase como se a penetrasse assim. Ao som de Roberto Carlos daqueles de motel, o côncavo, o convexo, tão apertado e rijo que ela temeu que molhasse a calça. Mas de volta à mesa, ao acariciar disfarçada o volume, tranqüilizou-se antes de sair puxada pela mão dourada do tenista-dourado.Que a fez encostar a cabeça entre os dois peitos dele, cheiro de colônia, desodorante, suor limpo de homem embaixo da camisa pólo amarelinha, lambeu a orelha dela, mordiscou a curva do pescoço ao som duma dessas trilhas românticas em inglês de telenovela, até que ela gemesse, toda molhada, implorando que parasse. O mais baixo não quis dançar. Quero foder você, rosnou: pra que essa frescura toda?

Foi quando ela levantou a perna, apoiando o pé na borda da cadeira, que todos viram o sapato vermelho. Depois dos comentários exaltados, as meticulosas preparações estavam encerradas, a boate quase vazia, sexta-feira instalada, era da Paixão, cinza cru de amanhecer urbano entrando pelas frestas, o único garçom impaciente, cadeiras sobre as mesas. Tinham chegado ao ponto. O ponto vivo, o ponto quente.

- Pra onde? - perguntou o tenista-dourado.
- Meu apartamento, onde mais?- ela disse, terminando de assinar o cheque, três estrelas, caneta importada.
- Mas afinal, com quem você quer ir?- o negro quis saber.
Ela acariciou o rosto mais baixo:
- Com os três, ora.

Apesar do uísque, saiu pisando firme nos sapatos vermelhos, os três atrás. Lá fora, na luz da manhã, antes de entrarem no carro que o manobrista trouxe e o tenista-dourado fez questão de dirigir, os sapatos vermelhos eram a única coisa colorida daquela rua.

III

Que tirasse tudo, menos os sapatos - os três imploraram no quarto em desordem. Garrafa de uísque na penteadeira. Fafá de Belém antiga no toca-discos (escolha do tenista-dourado, o negro queria Alcione), cinzeiro transbordante na mesinha de cabeceira. Tirou tudo, jogando para os lados. Menos a meia de seda negra, com costura atrás, e os sapatinhos vermelhos. Nua, jogou-se na colcha de chenile rosa, as pernas abertas. Eles cercaram lentos, jogando as zorbas sobre o crepe negro.

O negro veio por trás, que gostava assim, tão apertadinho. Ela nunca tinha feito, mas ele jurou no ouvido que seria cuidadoso, depois mordeu-a nos ombros, enquanto a virava de perfil, muito suavemente, molhando-a de saliva com o dedo, para que o mais baixo pudesse continuar a lambe-la entre as coxas, enquanto o tenista-dourado, de joelhos, esfregava o pau pelo rosto dela, até encontrar a boca. Tinha certo gosto também de pêssego, mas verde demais, quase amargo, e passando as mãos pelas costas dele confirmou aquela suspeita anterior de uma penugem macia num triângulo pouco acima da bunda, igual ao peito, acinzentado pelo amanhecer varando persianas, mas certamente dourado à luz do sol. Foi quando o negro penetrou mais fundo que ela desvencilhou-se do tenista-dourado para puxar o mais baixo sobre si. Ele a preencheu toda, enquanto ela tinha a sensação estranha de que, ponto remoto dentro dela, dos dois lados de uma película roxa de plástico transparente, como num livro que lera, os membros dos dois se tocavam, cabeça contra cabeça. E ela primeiro gemeu, depois debateu-se, procurou a boca dourada do tenista – dourado e quase, quase chegou lá. Mas preferia servir mais um uísque, fumar mais um cigarro, sem pressa alguma, porque pedia mais, e eles davam, generosos, e absolutamente não se espantar quando então invertiam-se as posições, e o tenista-dourado vinha por trás ao mesmo tempo que o mais baixo introduzia-se em sua boca, e o negro metido dentro dela conseguia transformar os gemidos em gritos cada vez mais altos, fodam-se os vizinhos, depois cada vez mais baixo novamente, rosnandos, grunhindos, até não passarem de soluço miudinhos, sete galáxias atravessadas, o sol de Vegas no décimo quarto grau de Capricórnio e a cara afundada nos cabelos pretos encaracolados do negro peito largo dele. De outros jeitos, de todos os jeitos: quatro,cinco vezes. Em pé, no banheiro, tentando aplacar-se embaixo da água fria do chuveiro. Na sala, de quatro nas almofadas de cetim, sobre o sofá, depois no chão. Na cozinha, procurando engov e passando café, debruçada na pia. Em frente ao espelho de corpo inteiro do corredor, sem se chocar que o mais baixo de repente viesse também por trás do tenista-dourado dentro dela, que acariciava o pau do negro até que espirrasse em jatos sobre os sapatos vermelhos dela, que abraçava os três, e não era mais Gilda, nem Adelina nem nada. Era um corpo sem nome, varado de prazer, coberto de marcas de dentes e unhas, lanhados de tocos de barbas amanhecidas, lambuzadas de leite sem dono dos machos das ruas. Completamente satisfeita. E vingada.

Quando finalmente se foram, bem depois do meio-dia, antes de jogar-se na cama limpou devagar os sapatos com uma toalha de rosto que jogou no cesto de roupa suja. Foi o néon, repetiu andando pelo quarto, aquelas luzes verdes, violetas e vermelhas piscando em frente à boate, foi o néon maligno da Sexta-Feira Santa, quando o diabo se solta porque Cristo está morto, pregado na cruz. Quando apagou a luz, teve tempo de ver-se no espelho da penteadeira, maquilagem escorrida pelo rosto todo, mas um ar de triunfo escapando do meio dos cabelos soltos.

Acordou no Sábado de Aleluia, manhã cedo, campainha furando a cabeça dolorida. Ele estava parado no corredor, dúzia de rosas vermelhas e um ovo de Páscoa nas mãos, sorriso nos lábios pálidos. Não era preciso dizer nada. Só sorrir também. Mas ela não sorria quando disse:

- Vai embora. Acabou.

Ele ainda tentou dizer alguma coisa, aquele ridículo terno cinza. Chegou mesmo a entrar um pouco na sala antes que ela o empurrasse aos gritos para fora, quase inteiramente nua, a não ser pelas meias de seda e os sapato vermelhos de saltos altíssimos. Havia um cheiro de cigarro e bebida e gozo entranhado pelos cantos do apartamento, a cara ressacada dela, manchas roxas de chupões no colo. Pela primeira, única e última vez ele a chamou muitas vezes de puta, puta vadia, puta escrota depravada e pervertida. Jogou o ovo e as rosas vermelhas na cara dela e foi embora para sempre.

Só então ela sentou para tirar os sapatos. Na carne dos tornozelos inchados, as pulseiras tinham deixado lanhos fundos. Havia ferimentos espalhados sobre os dedos. Tomou banho quente, arrumou a casa toda antes de deitar-se outra vez - o broche de brilhantes tinha desaparecido, mas que importava: era falso -, tomar dois comprimidos para dormir o resto do sábado e o domingo de Páscoa inteiros, acordando para comer pedaços de chocolate de ovo espatifado na sala.

Segunda-feira no escritório, quando a viram caminhando com dificuldade, cabelos presos, vestida de marrom, gola fechada, e quiseram saber o que era - um sapato novo, ela explicou muito simples, apertado demais, não é nada. Voltavam a doer, os ferimentos, quando ameaçava chuva.E ao abrir a terceira gaveta do armário para ver o papel de seda azul – clarinho guardando os sapatos, sentia um leve estremecimento. Tentava - tentava mesmo? - não ceder. Mas quase sempre o impulso de calçá-los era mais forte. Porque afinal, dizia-se, como num conto de Sonia Coutinho, há tantas sextas-feiras, tantos luminosos de néon, tantos rapazes solitários e gostosos perdidos nesta cidade suja... Só pensou em joga-los fora quando as varizes começaram a engrossar, escalando as coxas, e o médico então apalpou-a nas virilhas e depois avisou quê.


By: Mairana ;D

Caio Fernando Abreu - O inimigo secreto

I

O envelope não tinha nada de especial. Branco, retangular, seu nome e endereço datilografados corretamente do lado esquerdo, sem remetente. Guardou-o no bolso até a hora de dormir, quando, vestindo o pijama (azul, bolinhas brancas), lembrou. Abriu, então. E leu:

“Seu porco, talvez você pense que engana muita gente. Mas a mim você nunca enganou. Faz muito tempo que acompanho suas cachorradas. Hoje é só um primeiro contato. Para avisá-lo que estou de olho em você. Cordialmente, seu Inimigo Secreto”.

A esposa ao lado notou a palidez. E ele sufocou um grito, como nos romances. Mas não era nada, disse, nada, talvez a carne de porco do jantar. Foi à cozinha tomar sal de frutas. Leu de novo e quebrou o copo sem querer. Voltou para o quarto, apagou a luz e, no escuro, fumou quatro cigarros antes de conseguir dormir.

II

Dois dias depois veio o segundo. Examinando a correspondência do dia localizou o envelope branco, retangular, nome e endereço datilografados no lado esquerdo, sem remetente. Pediu um café à secretária, acendeu um cigarro e leu: “Tenho pensado muito em sua mãe. Não sei se você está lembrado: quando ela teve o terceiro enfarte e ficou inutilizada você não hesitou em mandá-la para aquele asilo. Ela não podia falar direito, mas conseguiu pedir que não a enviasse para lá. Queria morrer em casa. Mas você não suporta a doença e a morte a seu lado (embora elas estejam dentro de você). Então mandou-a para o asilo e ela morreu uma semana depois. Por sua culpa. Cordialmente, seu Inimigo Secreto”.

Abriu a terceira gaveta da escrivaninha e colocou-o junto com o primeiro. Pediu outro café, acendeu outro cigarro. Suspendeu a reunião daquele dia. Parado na janela, fumando sem parar, olhava a cidade e pensava coisas assim: “Mas era um asilo ótimo, mandei construir um túmulo todo de mármore, teve mais de dez coroas de flores, ela já estava mesmo muito velha”.

III

Alguns dias depois, outro. Com o tempo, começou a se estabelecer um ritmo. Chegavam às terças e quintas, invariavelmente. O terceiro, que ele abriu com dedos trêmulos, dizia:

“Você lembra da Clélia? Tinha só dezesseis anos quando você a empregou como secretária. Cabelo claro, fino, olhos assustados. Logo vieram as caronas até a casa em Sarandi, os jantares à luz de velas, depois os hoteizinhos em Ipanema, um pequeno apartamento no centro e a gravidez. Ela era corajosa, queria ter a criança, não se importava de ser mãe solteira. Você teve medo, não podia se comprometer. Semana que vem faz dois anos que ela morreu na mesa de aborto”.

IV

Fumava cada vez mais, sobretudo às terças e quintas. As cartas se acumulavam na terceira gaveta da escrivaninha:

“É o Hélio? Lembra do Hélio, seu ex-sócio? Desde que você conseguiu a maior parte das ações com aquele golpe sujo e o reduziu a nada dentro da companhia, ele começou a beber, tentou o suicídio e esteve internado três vezes numa clínica psiquiátrica.”

E:

“Então você se sentiu orgulhoso de si mesmo no jantar que os funcionários lhe ofereceram no sábado passado? Talvez não se sentisse tanto se pudesse ver no espelho a sua barriga gorda e os seus olhinhos de cobra no decote de dona Leda. Depois que você se foi, ela riu durante meia hora e foi para a cama com o Jorginho do departamento de compras.”

E:

“E o fracasso sexual com sua mulher no domingo? Será que minhas cartas o têm perturbado tanto? Ou será apenas que você está ficando velho e brocha?”

V

Com cuidado, a mulher insinuou que devia procurar um psiquiatra. Ele desconversou, falou no tempo e convidou-a para ir ao cinema. A terceira gaveta transbordava. Além das terças e quintas, depois de um mês as cartas passaram a vir também aos sábados. E, depois de dois meses, todos os dias. Tentava controlar-se, pensou em não abrir mais os envelopes. Chegou a rasgar um deles e jogar os pedaços no cesto de papéis. Depois viu-se de quatro, juntando pedacinhos como num quebra-cabeça, para decifrar: “Você tem observado seu filho Luiz Carlos? Já reparou na maneira de ele cruzar as pernas? E o que me diz do jeito como penteia o cabelo? Não é exatamente o que se poderia chamar um tipo viril. Parece que faz questão de cada vez mais parecer-se com sua mulher. Talvez tenha nojo de parecer-se com você”.

VI

“Há quanto tempo você não tem um bom orgasmo?”

“E aquele seu pesadelo, tem voltado? Você está completamente nu sobre uma plataforma no meio da praça. A multidão em volta ri das suas banhas, da sua bunda mole, obrigam-no a dançar com um colar de flores no pescoço e jogam-lhe ovos e tomates podres.”

“Uma farsa, essa sua vida, O seu casamento, a sua casa em Torres, a sua profissão — uma farsa. E o pior é que você já não consegue nem fingir que acredita nela.”

“Pergunte à sua mulher sobre um certo Antônio Carlos. E, se ela lhe disser que a mancha roxa no seio foi uma batida, não acredite.”

“Quando criança você não queria ser marinheiro?”

VII

Suportou seis meses. Uma tarde, pediu à secretária um envelope branco, colocou papel na máquina e escreveu: “Seu verme, ao receber esta carta amanhã, reconhecerá que venci. Ao chegar em casa, apanhará o revólver na mesinha-de-cabeceira e disparará um tiro contra o céu da boca”. Acendeu um cigarro. Depois bateu devagar, letra por letra: “Cordialmente, seu Inimigo Secreto”. Datilografou o próprio nome e endereço na parte esquerda do envelope, sem remetente. Chamou a secretária e pediu que colocasse no correio. Como vinha fazendo nos últimos seis meses.



By : Mairana ;D

segunda-feira, agosto 30, 2010

Clarice Lispector

"... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, espararei quanto tempo for preciso."

Caio Fernando Abreu

"Você sabe que não sou mulher de arrependimentos, de olhar pra trás, essas coisas. A gente tem que mirar no alvo e atirar, pronto, foi. A flecha não volta. Se acertamos ou erramos, não tem volta. Foi assim que levei a vida sempre."

Tati Bernardi.

Minha vontade agora é sumir. Chamar você. Me esconder. Ir até a sua casa e te beijar e dizer que te amo e que você é importante demais na minha vida para eu te abandonar. Sacudir você e dizer que você é um otário porque está me perdendo dessa maneira. Minha vontade é esquecer você. Apagar você da minha vida. Lembrar de você a cada manhã. Pensar em você para dormir melhor. Então eu percebo: IT’S ME, e minhas vontades são bipolares demais. Só o que não é bipolar demais é a minha ganancia por te ter. Sim, eu escolheria você. Se me dessem um último pedido, eu escolheria você. Se a vida acabasse hoje ou daqui mil anos, eu escolheria você…

domingo, agosto 29, 2010

Deixando a solidão e afins de lado...

Conto de Luis Vilela “Cadela
...
Era um dia quente, abafado, o sol encoberto, o céu nublado. Do chão parecia às vezes subir ondas de calor. Na fronte do homem o suor ia lentamente escorrendo. Ele tinha o rosto contraído, os olhos apertados. Continuava a segurar o arame.
- Adão – a mulher se aproximou mais, ficando quase ao lado dele? – Por que você não procura me compreender?
- Compreender? – Ele então se virou e olhou-a. – Você vai, faz isso, e depois vem me falar em compreender?
A mulher não respondeu.
Ele tornara a olhar para longe, as duas mãos agora segurando o arame.
- Você destruiu tudo – ele disse -, tudo o que havia de bom, tudo o que havia de verdadeiro entre nós. Você destruiu tudo isso.
A mulher o olhava em silêncio.
- Eu confiava em você – ele continuou -; eu te respeitava; eu te amava. Você era para mim como uma princesa.
- Eu estou te pedindo perdão ... – disse a mulher, com voz suave.
- Perdão... É fácil pedir perdão, não é? ...
- Todos nós erramos...
Ele continuou olhando para longe, o rosto ainda mais contraído, o suor escorrendo, o tórax se dilatando com a respiração opressa.
No rosto da mulher também gotas de suor iam deslizando. Os ramos do capim roçavam-lhe as pernas . Ela sentia uma vaga tontura.
- Adão...
- Chega! – ele gritou. – Não quero mais ouvir!
Seu rosto explodia de cólera.
- Cadela!
A mulher foi se afastando, ele veio vindo.
- É isso o que você é: Uma cadela!
Ela se encostou a uma árvore de grosso tronco. Ele agarrou sua blusa e rançou um botão. Rancou os outros. Rancou o soutien. Ela só o olhava, inerme e apavorada. Ele então pegou os seus seios, grandes e de tetas largas. Ela sentiu os dedos dele, fortes e ágeis. Fechou os olhos.
- Adão...
- Geme, cadela, geme!
Ela não pode mais e abraçou-se a ele com sofreguidão.
- Me larga! – ele empurrou-a.
Ela ficou olhando-o, ofegante, os lábios trêmulos.
- Tira a roupa! – ele ordenou.
Ela tirou, enquanto ele também tirava a sua. E, sem que ele nada dissesse, ela se jogou no capim – a cabeça tombada para trás, as pernas abertas, o sexo erguido para o céu, latejante e úmido.
- Eu quero... – ela murmurou para o ar, a voz rouca, os olhos nublados.
Ele pôs o pé sobre a sua barriga: ela o agarrou, agarrou sua perna, quis agarrar seu sexo – ele deu nela um empurrão. Ela tornou a se erguer e a querer agarrar seu sexo – ele deu nela um tapa. Ela ficou petrificada, olhando-o.
- Vira de costas! – ele ordenou.
- De costas? ... – a voz trêmula. – O que você vai fazer? ...
- Vai virar? – e ele ergueu a mão para bater.
Ela protegeu o rosto.
- Vai? – a mão ameaçava.
Ela então foi se virando, lágrimas aparecendo nos olhos.
- Você não pode... Eu nunca fiz...
- Cala a boca, sua puta!
Ela sentiu-o então sobre si – o corpo dele esmagando-a contra o capim, os braços e as pernas envolvendo-a, ele agredindo-a, machucando-a.
- Você não pode... Está machucando...
Ele ofegava em sua nuca, as mãos esfregavam seus seios e seu sexo. E de repente ela parou de chorar: sentiu que tinha entrado e que agora ia entrando, rápido e firme e de uma vez. E então estava tudo dentro dela, e mexia, e ia e vinha, doído e enervante, e doce, e profundo, subindo até sua cabeça, entontecendo-a, crescendo nela toda, fazendo-a torcer-se e rir e gemer e suspirar, e pedir e gritar, desatinada, alucinada, gritando gritando gritando – e então levada para longe, nascendo e morrendo em sucessivas ondas de luz e de escuro, até não poder mais: e amoleceu desfalecida.
“Levanta”- ela escutou, mas não abriu os olhos, perdido numa suave inconsciência.
“Levanta” – Ela escutou de novo, e então abriu os olhos viu à sua frente o capim.
- Sua roupa – e ele jogou-a.
Ela se vestiu, de costas para ele. Vestia-se devagar. Amarrou as pontas da blusa. Calçou os sapatos, que estavam ali perto.
- Agora vá – disse ele.
Ela voltou-se: fitou-o com um olhar calmo e distante, como se não o tivesse entendido.
- Eu disse: agora vá.
- Embora?
- É, embora.
A mulher começou a andar, a descer a encosta. Ia lentamente. Então parou; virou-se e veio andando de volta.
Parou em frente ao homem? Abaixou-se, ajoelhou e beijou-lhe os pés.

Posted By Linso. Espero que tenham gostado ;D

sexta-feira, agosto 27, 2010

Martha Medeiros




Pinto a realidade com alguns sonhos, e transformo alguns sonhos em cenas reais.
Choro lágrimas de rir e quando choro pra valer não derramo uma lágrima.
Amo mais do que posso e, por medo, sempre menos do que sou capaz.

Martha Medeiros




Não morro de amores por pessoas sem mistério, quando se é muito transparente, muito risonho e educado é raro ser levado a sério. Prefiro os mais silenciosos, os que abrem a boca de menos, os mais serenos e mais perigosos. Aqueles que ninguém define e que sempre analisam os fatos por um novo enfoque. Prefiro os que têm estoque aos que deixam tudo à mostra na vitrine.

Clarice Lispector

"Com todo o perdão da palavra, eu sou um mistério pra mim."



Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência. Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei, eu existo.

quarta-feira, agosto 25, 2010

Caio Fernando Abreu


''Pois por fora, hoje, havia chuva e um pouco de frio: essa chuva e esse frio parecem que empurram a gente mais pra dentro da gente mesmo, então as pessoas ficam mais lentas, mais verdadeiras, mais bonitas. Hoje eu estava assim: mais lento, mais verdadeiro, mais bonito até.''

Caio Fernando Abreu


"Eu quero mesmo é alguém me faça mudar completamente de opinião.
Que faça meu corpo querer companhia nos momentos em que minha mente insiste pela solidão."

domingo, agosto 15, 2010

A voz do silêncio - Martha Medeiros

Pior do que uma voz que cala, é um silêncio que fala!" Simples, rápido! E quanta força! Imediatamente me veio à cabeça situações em que o silêncio me disse verdades terríveis pois, você sabe, o silêncio não é dado a amenidades. Um telefone mudo. Um e-mail que não chega. Um encontro onde nenhum dos dois abre a boca. Silêncios que falam sobre desinteresse, esquecimento, recusas. Quantas coisas são ditas na quietude, depois de uma discussão. O perdão não vem, nem um beijo, nem uma gargalhada para acabar com o clima de tensão. Só ele permanece imutável, o silêncio, a ante-sala do fim. É mil vezes preferível uma voz que diga coisas que a gente não quer ouvir, pois ao menos as palavras que são ditas indicam uma tentativa de entendimento. Cordas vocais em funcionamento articulam argumentos, expõem suas queixas, jogam limpo. Já o silêncio arquiteta planos que não são compartilhados. Quando nada é dito, nada fica combinado. Quantas vezes, numa discussão histérica, ouvimos um dos dois gritar: "Diz alguma coisa, mas não fica aí parado me olhando!" É o silêncio de um mandando más notícias para o desespero do outro. É claro que há muitas situações em que o silêncio é bem-vindo. Para um cara que trabalha com uma britadeira na rua, o silêncio é um bálsamo. Para a professora de uma creche, o silêncio é um presente. Para os seguranças de um show de rock, o silêncio é um sonho. Mesmo no amor, quando a relação é sólida e madura, o silêncio a dois não incomoda, pois é o silêncio da paz. O único silêncio que perturba é aquele que fala. E fala alto. É quando ninguém bate à nossa porta, não há recados na secretária eletrônica e mesmo assim você entende a mensagem.


By: Mairana ;D

sábado, agosto 14, 2010

Solidão - Clarice Lispector




O que nos salva da solidão
é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, quando duas pessoas estão juntas, apesar de falarem, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão.

quinta-feira, agosto 12, 2010

Sala de Espera - Luís Fernando Veríssimo

Sala de espera de dentista. Homem dos seus quarenta anos. Mulher jovem e bonita. Ela folheia uma Cruzeiro de 1950. Ele finge que lê uma Vida dentária.
Ele pensa: que mulherão. Que pernas. Coisa rara, ver pernas hoje em dia. Anda todo mundo de jeans. Voltamos à época em que o máximo era espiar um tornozelo. Sempre fui um homem de pernas. Pernas com meias. Meias de náilon. Como eu sou antigo. Bom era o barulhinho. Suish-suish. Elas cruzavam as pernas e fazia suish-suish. Eu era doido por um suish-suish.
Ela pensa: cara engraçado. Lendo a revista de cabeça para baixo.
Ele: te arranco a roupa e te beijo toda. Começando pelo pé. Que cena. A enfermeira abre a porta e nos encontra nus sobre o carpete, eu beijando o pé. O que é isso?! Não é o que a senhora está pensando. É que entrou um cisco no olho desta moça e eu estou tentando tirar. Mas o olho é na outra ponta! Eu ia chegar lá. Eu ia chegar lá.
Ela: ele está olhando as minhas pernas por baixo da revista. Vou descruzar as pernas e cruzar de novo. Só para ele aprender.
Ele: ela descruzou e cruzou de novo! Ai meu Deus. Foi pra me matar. Ela sabe que eu estou olhando. Também, a revista está de cabeça pra baixo. E agora? Vou ter que dizer alguma coisa.
Ela: ele até que é simpático, coitado. Grisalho. Distinto. Vai dizer alguma coisa...
Ele: o que é que eu digo? Tenho que fazer alguma referência à revista virada. Não posso deixar que ela me considere um bobo. Não sou um adolescente. Finjo que examino a revista mais de perto, depois digo "Sabe que só agora me dei conta de que estava lendo essa revista de cabeça para baixo? Pensei que fosse em russo." Aí ela ri e eu digo "E essa sua Cruzeiro? Tão antiga que deve estar impressa em pergaminho, é ou não é? Deve ter desenhos infantis do Millôr." Aí riremos os dois, civilizadamente. Falaremos nas eleições e na vida em geral. Afinal, somos duas pessoas normais, reunidas por circunstância numa sala de espera. Conversaremos cordialmente. Aí eu dou um pulo e arranco toda a roupa dela.
Ela: ele vai falar ou não? É do tipo tímido. Vai dizer que tempo, né? A senhora não acha? É do tipo que pergunta "Senhora ou senhorita?" Até que seria diferente. Hoje em dia a maioria já entra rachando... Vamos variar de posição, boneca? Mas espere, nós ainda nem nos conhecemos, não fizemos amor em posição nenhuma! É que eu odeio as preliminares. Esse é diferente. Distinto. Respeitador.
Ele: digo o quê? Tem um assunto óbvio. Estamos os dois esperando a vez num dentista. Já temos alguma coisa em comum. Primeira consulta? Não, não. Sou cliente antiga. Estou no meio do tratamento. Canal? É. E o senhor? Fazendo meu check-up anual. Acho que estou com uma cárie aqui atrás. Quer ver? Com esta luz não sei se... Vamos para o meu apartamento. Lá a luz é melhor. Ou então ela diz pobrezinho, como você deve estar sofrendo. Vem aqui e encosta a cabecinha no meu ombro, vem. Eu dou um beijinho e passa. Olhe, acho que um beijo por fora não adianta. Está doendo muito. Quem sabe com a sua língua...
Ela: ele desistiu de falar. Gosto de homens tímidos. Maduros e tímidos. Ele está se abanando com a revista. Vai falar do tempo. Calor, né? Aí eu digo "É verão". E ele: "É exatamente isso! Como você é perspicaz. Estou com vontade de sair daqui e tomar um chope". "Nem me fale em chope." "Você não gosta de chope?" "Não, é que qualquer coisa gelada me dói a obturação". "Ah, então você está aqui para consultar o dentista, como eu. Que coincidência espantosa! Os dois estamos com calor e concordamos que a causa é o verão. Os dois temos o mesmo dentista. É o destino. Você é a mulher que eu esperava todos estes anos. Posso pedir sua mão em noivado?"
Ele: ela está chegando ao fim da revista. Já passou o crime do Sacopã, as fotos de discos voadores... Acabou! Olhou para mim. Tem que ser agora. Digo: "Você está aqui para limpeza de pernas? Digo, de dentes? Ou para algo mais profundo como uma paixão arrebatadora por pobre de mim?"
Ela: e se eu disser alguma coisa? Estou precisando de alguém estável na minha vida. Alguém grisalho. Esta pode ser a minha grande oportunidade. Se ele disser qualquer coisa, eu dou o bote. "Calor, né?" "Eu também te amo!"
Ele: melhor não dizer nada. Um mulherão desses. Quem sou eu? É muita perna pra mim. Se fosse uma só, mas duas! Esquece, rapaz. Pensa na tua cárie que é melhor. Claro que não faz mal dizer qualquer coisinha. Você vem sempre aqui? Gosto do Roberto Carlos? O que serão os buracos negros? Meu Deus, ela vai falar!
- O senhor podia...
- Não! Quero dizer, sim?
- Me alcançar outra revista?
- Ahn... Cigarra ou Revista dda Semana?
- Cigarra.
Aqui está.
- Obrigada.
Aí a enfermeira abre a porta e diz:
- O próximo.
E eles nunca mais se vêem.

quarta-feira, agosto 04, 2010

Mudando um pouco de foco

Para dar uma variada básica. Trouxe dois cartunes bem interessantes...




Coitado do pintinho. Não deve haver coisa pior do que ver a mãe morrer =/.





Essa eu deixo pra vocês comentarem. 'usgkusgkusgkusukgs

By: Linso